Com o objetivo de preservar a história e identidade do Judiciário do estado, o Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP) iniciou, em 2019, o projeto de resgate memorial. Com o avanço das pesquisas, novas histórias e figuras históricas vão aparecendo, como o caso do juiz Severino Carvalho, seu pajem e suas vidas na comarca de Macapá no passado.
Segundo o Michel Ferraz, museólogo do TJAP, a história foi descoberta durante a construção de uma tabela com o nome dos magistrados, servidores, promotores, advogados, dentre outras figuras que atuaram nas comarcas que atualmente fazem parte da jurisdição amapaense. “Essa tabela certamente ajudará nas próximas pesquisas. Ao expandimos as pesquisas para jornais maranhenses nos deparamos com esse magistrado. Anotamos seu nome, pesquisamos um pouco mais e encontramos este fato interessante.
O magistrado atuava na recém-criada comarca de Macapá no ano de 1859. Sua judicatura foi curta no território e jornais da época a noticiaram como pautada nos padrões desejados de legalidade, imparcialidade e probidade. Além da conduta jurídica, os jornais registraram também uma viagem à província do Maranhão que culminou com a prisão do seu pajem, exigindo que o magistrado impetrasse habeas corpus em seu favor.
Antes de morar em Macapá, Carvalho atuou como promotor público na comarca de Vassouras, na província do Rio de Janeiro, e a proximidade com o governo imperial pode ter facilitado sua ascensão profissional. Foi nomeado juiz de Direito de Macapá em 3 de janeiro 1859 e retornou poucas vezes a sua terra.
Em fevereiro e março de 1860, ele viajou para a então vila de Brejo (MA), onde esteve com familiares, reviu pessoas conhecidas e participou de banquetes. Entretanto, também entrou em contato direto com as questões e as intrigas políticas que envolvia sua família. A figura central era seu pai, o comendador Severino Alves de Carvalho.
Nos registros, constam que “o Dr., segundo o uso do sul, trouxe um pajem [seu escravo, de nome Raimundo] que o acompanhara trajando com decência, como é de costume entre pessoas distintas”. Em uma dessas diligências, Raimundo foi parado na rua e interrogado por um dos integrantes do “grupinho mata vigário”.
É narrado que “estes queriam saber do pajem narrativas de fatos que supostamente o servo teria ouvido na casa do irmão do juiz Severino. Acuado, Raimundo respondeu que nada tinha ouvido, que nada sabia, e que ainda sabendo, não tinha por costume contar o que se passava na casa dos seus senhores”. O interrogante então levou o pajem para a cadeia. Ao narrar os fatos, o jornal assevera que o juiz “em defesa do seu servo, impetra habeas corpus e Raimundo foi posto em liberdade no outro dia, depois de ter que carregar na cabeça ‘o barril em que se encerram as porcarias da cadeia’”.
No registro da ocorrência, o subdelegado Torquatinho informou que prisão se dava “por causa andar o escravo como fôrro, e fazendo immoralidades”. O museólogo Michel Ferraz questiona os fundamentos desse registro. “Andar como ‘fôrro’ seria usar sapatos e roupas dignas? Fazer ‘immoralidades’ seria dar respostas ou andar de cabeça erguida? Neste caso, ficaremos sem respostas. Todavia, o que se observa é que o subdelegado Torquatinho preferiu atacar a família Alves de Carvalho, humilhando o pajem Raimundo.”
Ainda segundo Ferraz, a história do ocorrido com o juiz de Direito de Macapá é importante para mostrar como a questão racial estava presente no cotidiano. E o escravizado, sempre vulnerável, por vezes era alvo de vinganças direcionadas aos seus senhores. “Entre outras questões passíveis de análise, o caso também exemplifica o período em que a força policial se sobrepunha, pungentemente, à força jurídica.”
As pesquisas sobre a memória da justiça amapaense vêm sendo realizadas pelos servidores do TJAP Marcelo Jaques de Oliveira (historiador) e Michel Duarte Ferraz (museólogo) e em breve estarão disponíveis no Museu Virtual do TJAP (em fase de planejamento).
Fonte: TJAP